Conto O Homem Sem Corpo

Renato Teixeira
22 min readMar 24, 2021

--

Por: Renato Teixeira Martins

E: Tiago Braga

Data: 09/03/2021

https://www.deviantart.com/neisbeis/art/Marine-tutorial-174227894
Com permissão do autor!

Ele estava sentado numa espécie de caixote de madeira numa posição firme e absolutamente imovél.

Nada nele se movia, de tal forma que um observador desatento poderia imaginar que se tratava de uma estátua.

Ou algo que não está vivo.

Tenho estudado ele há bastante tempo.

Me chamo Sarah e fui designada para fazer relatórios constantes sobre o caso HSC-01.

Posso ser honesta?

Não sei o que a sigla significa.

Podem ser as iniciais do nome que ele teve antes de tudo acontecer…

…pode ser qualquer coisa.

Tomei a liberdade de chamar “Homem Sem Corpo-01”.

Até mesmo o número depois da sigla já é alvo de pensamentos assustadores.

Ele é o primeiro, então?

Suponho que sim, mas nunca me confirmarão.

Desculpe, estou divagando aqui.

Vou lhe dar um apanhado do que está acontecendo e seguimos daí, tudo bem?

Já colonizamos Marte.

Num esforço hercúleo mandamos muita gente para todos os lados da Via-Láctea.

É um processo complicado, mas não caberiam todos na nossa pequena Terra.

Além do mais, não devemos ter notícias deles por um bom tempo, porque as distâncias são colossais.

A maioria dos problemas atuais são mais domésticos, principalmente entre a Terra e Marte.

A coisa ficou feia de tal maneira que guerras civis estão sendo travadas.

De uma maneira estranha a coisa ficou dividida entre “vermelhos” e “azuis”.

Sim, Terra contra Marte.

Esse é o jeito humano de fazer as coisas.

Mal conseguimos um cantinho novo com terra para viver, e temos de manchá-lo de sangue.

Aí é que entra nosso amigo HSC-01.

Ele é um soldado.

Bem, vai voltar a ser se meu trabalho for bem concluído.

Não sei se você é uma pessoa paciente ou impaciente e como devo contar essa história.

Na dúvida vou contar dos dois jeitos e você escolhe qual caminho prefere, combinado?

Lembra do Mágico de Oz?

Lá temos o Homem de Lata e sua busca por um coração.

Não sei se você teve a oportunidade de ler a obra, mas o Homem de Lata tem uma origem bem peculiar.

Ele é amaldiçoado por uma das bruxas da história por “encomenda” de outra pessoa.

Vai aos poucos perdendo parte de seu corpo e vai substituindo por lata, até que no fim, já não lhe resta mais nada de carne efetivamente.

Nosso Homem Sem Corpo, parado e sentado em cima de um caixote está na mesma condição.

Em toda e qualquer época as guerras são cruéis, até mesmo hoje em que praticamente qualquer ferida pode ser fechada em segundos.

Acontece que crescer membros novos…

…ou melhor, imprimi-los é extremamente caro.

E a que custo?

Custo de sair novamente para a linha de combate e perdê-lo novamente!

Basicamente só os muito ricos ou poderosos conseguem novos membros.

Os outros, que se virem com fibras e metal.

Pelo menos as fibras e metal são praticamente indestrutíveis.

Não me foi revelado o passado de HSC-01.

A ideia por detrás disso faz todo sentido, pois devo analisá-lo como ele é.

Com base nos meus conhecimentos de soldados e psicologia, devo entender se o que temos diante de nós é humano ou máquina.

Se for máquina será condicionado e programado para obedecer.

Basicamente, infiltrar, matar e destruir.

Se for humano, receberá o mesmo tratamento…

…mas com o adicional de poder estar entre outras pessoas quando não estiver…

…”ativo”.

Pare.

Tenho que ter cuidado com essas palavras.

Não posso “coisificar” o homem assim.

É antiético, desumano e vai contra o que eu acredito como pessoa.

Vai Sarah, continue a história.

Homem de Lata, soldado, partes do corpo caras, Homem Sem Corpo, saber se é humano.

Creio que já abordei os principais tópicos.

Há alguns outros pontos que fogem um pouco da normalidade e preciso MUITO da sua paciência.

Nas poucas informações médicas que consegui colher do nosso indivíduo havia diversas censuras.

Tive que montar um verdadeiro quebra-cabeças para entender o que aconteceu.

Talvez aquela parte da “maldição” do Homem de Lata do Mágico de Oz, esteja mais próxima do que queria.

Vamos lá…

Tivemos uma batalha feia com Marte há alguns anos.

Diversas naves em órbita e com a bandeira da Terra foram derrubadas e qualquer um que se aproximasse era abatido, seja civil ou militar.

Um grupo especial de incursão foi designado.

Normalmente a infantaria usa capacete, botas, respirador, arma e um protetor peitoral capaz de aguentar um baita coice.

Mas o grupo especial ganhou um “presentinho” a mais.

Uma armadura digna de filmes de ficção científica.

Ali havia de tudo, respirador, absorvedor de impactos, injeção anestésica…

…aliás esse último, ouvi dizer, alguns estavam alterando para estimulantes…

…e tantos outros recursos que lutas de humanos contra humanos já não eram mais justas.

Nunca foram, se você pensar direito.

Basicamente você tinha um tanque em tamanho humano, se movendo, atirando e matando.

Quando recebia um tiro, o coice quase não era sentido e a carne lá dentro era anestesiada.

Aliás, soldados destreinados faziam movimentos tão amplos, rápidos e fortes…

…e como estavam anestesiados…

…que frequentemente destruíram tendões.

Coisa de primeiras versões.

Hoje, só há hematomas e isso faz parte do serviço.

Agora pense comigo, como se derrota algo que não é parado por projéteis rápidos?

E que tal, coisas que se movem devagar?

Foi jogo sujo com certeza.

Jogaram ácido industrial nos soldados do Grupo Especial.

Nosso amigo em questão perdeu ambas as pernas.

Algumas cirurgias depois e ele tinha duas próteses em pleno funcionamento.

Se chutasse uma bola iria jogá-la tão longe que um novo recorde seria batido…

…ou a bola explodiria com o impacto.

Amputados no Grupo Especial são coisas do dia a dia.

A piada interna do grupo, e eu já atendi muitos relatando isso…

…era de que aqueles que tinham todos os membros não foram devidamente “iniciados”.

Os braços foram em outra oportunidade.

Outra incursão em Marte, perto do Monte Olimpo, a maior montanha de Marte.

Como a maior parte da artilharia antiaérea de Marte ficava ali, resolveram sabotá-la numa missão muito especial.

Acontece que aquela área é militarmente intocável.

Nada chega pelo chão, e pelo ar é rapidamente dizimada.

Para cada problema se inventa uma solução engenhosa.

Pegaram todos do Grupo Especial, colocaram nas suas armaduras e os enfiaram dentro do maior canhão eletromagnético já feito.

Realmente a nave Osíris era exagerada nesse quesito.

Reza a lenda que BEM antigamente havia circos que colocavam palhaços dentro de canhões e os arremessavam a grandes alturas e distâncias.

O truque era como mantê-los vivos, não é?

No caso dos nossos garotos, eram as armaduras que fariam o serviço de proteção.

O canhão eletromagnético da Osíris os jogaria numa velocidade absurda na atmosfera de Marte;

Eles cairiam até o mais próximo possível do ponto de inserção e fariam o serviço.

Alguma informação vazou e no dia da operação, quando a Osíris se aproximou

foi atacada.

Acontece que do lado de baixo, na superfície também havia canhões eletromagnéticos.

Não eram do mesmo tamanho da Osíris, mas em quantidade eram superiores.

Estavam destruindo a nave convés por convés e resolveram contra-atacar ainda assim.

Lançaram o Grupo Especial pouco antes da Osíris ser totalmente destruída.

Os tiros continuaram e metade do Grupo Especial se foi, sendo arrebentado no ar por canhões gigantes enquanto desciam rapidamente.

Eram estrelas cadentes!

HSC-01 foi um dos poucos sobreviventes e os tiros arrancaram-lhe a mão esquerda e uma parte considerável de tudo que havia do lado direito.

A armadura fez o serviço mantendo-o vivo tempo suficiente para ele ser resgatado.

Dizem que ele ainda enfrentou inimigos atirando com os pés, mas duvido muito.

Está contando aí?

Perdeu pernas, perdeu braços…

Só faltava peitoral e cabeça, correto?

Bem, aqui a história fica um pouco esquisita.

Não consigo deixar de olhar para o HSC-01 através do vidro desse aquário e pensar no quanto ele deve ter sofrido.

Não há registros claros de como o restante de seu corpo foi perdido.

Suspeita-se de algum tipo de ataque biológico…

…algum tipo de rejeição de tantos componentes cibernéticos…

…ou câncer terminal.

Claro que pesquisei todas essas possibilidades a fundo.

Não há registro de ataques biológicos em toda a história do Exército da Terra…

…e sim, eu admito que “ET” é uma sigla terrível.

Não há, em toda a história e literatura, nenhuma rejeição tão catastrófica de tecido orgânico ou cibernético nos últimos 200 anos.

E, como era de se esperar, o perfil genético do nosso HSC-01 não indica nenhuma tendência a câncer expressiva.

Só seria possível 100% de certeza se eu tivesse acesso aos familiares dele, mas essa informação eu não tenho.

Mas os mistérios nem foram todos descritos!

O que mais me intriga é que em todas as circunstâncias que eu descrevi as missões foram um sucesso.

Como um homem cujas pernas foram dissolvidas em ácido industrial, conseguiu terminar uma missão?

Como esse mesmo homem, meses depois, é abatido no ar e sem MEMBROS do corpo, conseguiu não só sobreviver, como explodir uma base?

Para qualquer um dos computadores que eu faço essas simulações a resposta sempre é a mesma “não conseguiria”.

E aqui estamos.

O que sobrou do homem está ali na minha frente, imóvel.

E cabe a mim descobrir.

Me enervo, com vontade suficiente de agarrar todo meu material e jogar fora.

Esquece.

Numa atitude impulsiva eu abro a porta do aquário de observação do HSC-01 e entro.

Não há nenhuma reação perceptível por parte dele.

A visão de dentro do aquário é diferente da visão de fora.

Claro, projeções.

Todo lugar tem isso.

Por dentro, o aquário parece uma praça muito tranquila com chão de pedra e dando vistas para uma floresta que começa rara e se torna densa.

O verde, o amarelo e o cinza tem um tom incrível.

Minha raiva foi embora subitamente.

Me sento num dos bancos disponíveis e aprecio o que seria equivalente ao sol.

Claro que estamos a 50 metros de profundidade, mas, repito, é tudo projeção, então para todos os efeitos está fazendo um sol delicioso.

Volto rapidamente para minha sala, pego um livro e uma xícara de café.

Sim, estive com raiva, mas isso não diminui minha necessidade de vitamina D.

Me sento e começo a bebericar o café estando quase de frente para nosso hóspede.

Ele continua parado e depois que paro de lhe observar, venho para meu livro.

Eu gosto de pensar assim.

“Eu vou”, “eu entro”, “eu estou” no livro.

Por vezes até os “como”!

Esse eu escolhi baseado nesse trabalho que me deram.

Entenda, sou perita em Psicologia Clínica, com especialidade em Estresse Pós-traumático.

Esse somatório de conhecimento é importante para tratar veteranos de guerra.

Gente que viu centenas, milhares de pessoas morrendo…

…algumas pelas suas próprias mãos.

Meu primeiro paciente foi um amputado, ex-fuzileiro que não tinha dinheiro para pagar suas próteses orgânicas.

Com muita terapia e um bom advogado conseguimos fazer o Estado pagar por uma nova perna e um novo braço para o homem.

Ele parecia bem, até se enforcar meses depois que lhe dei alta.

Na sua nota de suicídio: “Já lutei tudo que tinha que lutar. Ganhei para os outros, mas e para mim?”

Um outro paciente ficou catatônico por meses.

Quando saiu dessa crise fizemos uma atividade de desenho…

…e tudo era um mar de vermelho.

Quando pedi para ele me explicar o desenho, meu coração saiu do peito.

Era “o chão de Marte, com o sangue das pessoas que ele matou”.

Entende o que eu estou dizendo?

O que eu tenho, aqui na minha frente?

É um homem?

É um amontoado de placas, circuitos, eletricidade e microchips?

Não consigo sair do título da porcaria do livro!!

“O Barco de Teseu”.

Fecho o livro…

…o que é um termo bem interessante para uma folha plástica ultra rígida…

…que acende milhões de minúsculos pontos luminosos para formar as palavras do livro que estava lendo.

Tomo um gole do café, olho para nosso convidado mais uma vez, suspiro e lanço uma pergunta.

- Aqui é bastante tranquilo, não é verdade?

Não vem nenhuma resposta e ele continua olhando para frente.

Quando desliguei o livro deixei os monitores do HSC-01 disponíveis.

Há energia ali.

Ele não está “desligado”.

Todas as funções estão ativas.

Ele apenas não age.

Exatamente como um catatônico.

Me inclino um pouco para a frente e fico encarando a projeção que ele escolheu para esse lugar.

Só depois de um tempo que percebi.

Uma floresta de bambus.

O ambiente inteiro tinha aspecto oriental, na verdade.

O banco, a floresta de bambus, uma lanterna de pedra mais adiante…

Assim que uma suave brisa passou por mim, lembrei-me do café e bebi mais.

Ok, admito que gosto bastante.

Voltei para o livro ou pelo menos para a ideia dele e fiquei divagando.

O barco.

Nele, a alegoria era clara, mas inconclusiva.

O barco de Teseu voltava de suas aventuras parcialmente destruído e o consertavam.

Trocavam madeiras aqui e ali, envernizavam, davam um tapinha nele e zarpava para mais aventuras contra deuses e monstros.

Voltava novamente destruído, era renovado e assim ia.

E alguém pensou “hei, se você trocou todas as madeiras, ainda é o mesmo barco”?

E eu respondi, mais com a boca do que com os pensamentos.

- Se você troca todas as suas partes, ainda é humano?

E comecei uma ladainha interna que sempre deixava meus pais loucos.

Enumerei todas as possibilidades que consegui, só com a cabeça.

Uma criança nasce, cresce e se desenvolve.

Se calcula que a cada 7 anos aproximadamente, nenhuma das suas células disponíveis e atuantes são as mesmas que iniciaram “a viagem”.

Não se pode dizer que dos 0 aos 7 anos somos uma pessoa, depois dos 7 ao 14 anos somos outras, etc, mas você entendeu, não é?

Afinal a troca é tão sutil, tão interna e profunda, a adaptação é tão grande, o remapeamento neurológico é tão perfeito…

Somos um degradê!

Mas e quando se troca a carne por metal, ou uma fibra qualquer?

Há tantos truques para se enganar o cérebro e ele achar que aquele braço ou perna mecânicos são de carne e ossos!

Mas e quando o próprio cérebro é trocado no processo?

Será que em algum lugar, material ou imaterial há a contraparte orgânica desse homem que está na minha frente?

Será que numa dimensão bizarra existe uma espécie de zumbi feita só com o corpo do HSC-01 e aqui está a mente?

E se existe espírito, para onde ele foi?

Está ali dentro?

Está convertido em sinais binários, ou se foi com a massa orgânica descartada com o lixo hospitalar de sua última operação?

E se…

…e se ele está ali agora, dentro daquilo, preso, sem poder sair?

Como um demônio da cultura japonesa, lacrado, no escuro e sozinho, impossibilitado de sair?

Essa última possibilidade me doeu demais.

Sei que ela só foi colocada em pauta por causa do cenário que ele escolheu para esse lugar.

Preso!

Terrivelmente preso, com frio, com medo, confuso e só!

Saio do banco e sem querer derrubo a xícara de café.

Aconteceu tão rápido!

Antes que a xícara caísse no chão, ele conseguiu pegá-la.

O líquido se derramou, mas lá estava a xícara, intacta e estávamos a centímetros um do outro.

- Eu…eu posso te ajudar de alguma maneira?

Respondi gaguejando, ainda temerosa das possibilidades que os generais que me deram essa tarefa avisaram.

“Queremos que você o veja, principalmente se ele vai ficar louco, arrancar a própria cabeça e matar a todos nós”.

Com meu senso de humor torto eu pensei na coisa na mesma sequência em que eles falaram.

Um robô sem cabeça matando pessoas, até chegar num lugar cheio de gente, ajoelhar-se, expor a bateria de fusão e explodir tudo num raio de quilômetros.

Ele nada respondeu sobre minha pergunta.

Voltamos, ambos, para nossas posições originais, peguei minha xícara e fiquei olhando para ele.

- Por favor me diga. Eu posso te ajudar?

E foi assim que eu soube a resposta para o dilema do Barco de Teseu.

Ele próprio respondeu.

Chacoalhou a cabeça, da esquerda para a direita, lentamente, mas de maneira clara para dizer “Não”.

E voltou para sua imobilidade.

Não havia mais nada ali dentro.

Perdi um bom café, perdi meses de trabalho…

…mas nada disso nunca vai se comparar ao que aquele homem perdeu.

Afinal, agora ele era menos do que um Homem Sem Corpo.

Por: Renato Teixeira Martins

E: Tiago Braga

Data: 09/03/2021

Inspiração: Imagem abaixo, Barco de Teseu

Ele estava sentado numa espécie de caixote de madeira numa posição firme e absolutamente imóvel.

Nada nele se movia, de tal forma que um observador desatento poderia imaginar que se tratava de uma estátua.

Ou algo que não está vivo.

Tenho estudado ele há bastante tempo.

Me chamo Sarah e fui designada para fazer relatórios constantes sobre o caso HSC-01.

Posso ser honesta?

Não sei o que a sigla significa.

Podem ser as iniciais do nome que ele teve antes de tudo acontecer…

…pode ser qualquer coisa.

Tomei a liberdade de chamar “Homem Sem Corpo-01”.

Até mesmo o número depois da sigla já é alvo de pensamentos assustadores.

Ele é o primeiro, então?

Suponho que sim, mas nunca me confirmarão.

Desculpe, estou divagando aqui.

Vou lhe dar um apanhado do que está acontecendo e seguimos daí, tudo bem?

Já colonizamos Marte.

Num esforço hercúleo mandamos muita gente para todos os lados da Via-Láctea.

É um processo complicado, mas não caberiam todos na nossa pequena Terra.

Além do mais, não devemos ter notícias deles por um bom tempo, porque as distâncias são colossais.

A maioria dos problemas atuais são mais domésticos, principalmente entre a Terra e Marte.

A coisa ficou feia de tal maneira que guerras civis estão sendo travadas.

De uma maneira estranha a coisa ficou dividida entre “vermelhos” e “azuis”.

Sim, Terra contra Marte.

Esse é o jeito humano de fazer as coisas.

Mal conseguimos um cantinho novo com terra para viver, e temos de manchá-lo de sangue.

Aí é que entra nosso amigo HSC-01.

Ele é um soldado.

Bem, vai voltar a ser se meu trabalho for bem concluído.

Não sei se você é uma pessoa paciente ou impaciente e como devo contar essa história.

Na dúvida vou contar dos dois jeitos e você escolhe qual caminho prefere, combinado?

Lembra do Mágico de Oz?

Lá temos o Homem de Lata e sua busca por um coração.

Não sei se você teve a oportunidade de ler a obra, mas o Homem de Lata tem uma origem bem peculiar.

Ele é amaldiçoado por uma das bruxas da história por “encomenda” de outra pessoa.

Vai aos poucos perdendo parte de seu corpo e vai substituindo por lata, até que no fim, já não lhe resta mais nada de carne efetivamente.

Nosso Homem Sem Corpo, parado e sentado em cima de um caixote está na mesma condição.

Em toda e qualquer época as guerras são cruéis, até mesmo hoje em que praticamente qualquer ferida pode ser fechada em segundos.

Acontece que crescer membros novos…

…ou melhor, imprimi-los é extremamente caro.

E a que custo?

Custo de sair novamente para a linha de combate e perdê-lo novamente!

Basicamente só os muito ricos ou poderosos conseguem novos membros.

Os outros, que se virem com fibras e metal.

Pelo menos as fibras e metal são praticamente indestrutíveis.

Não me foi revelado o passado de HSC-01.

A ideia por detrás disso faz todo sentido, pois devo analisá-lo como ele é.

Com base nos meus conhecimentos de soldados e psicologia, devo entender se o que temos diante de nós é humano ou máquina.

Se for máquina será condicionado e programado para obedecer.

Basicamente, infiltrar, matar e destruir.

Se for humano, receberá o mesmo tratamento…

…mas com o adicional de poder estar entre outras pessoas quando não estiver…

…”ativo”.

Pare.

Tenho que ter cuidado com essas palavras.

Não posso “coisificar” o homem assim.

É antiético, desumano e vai contra o que eu acredito como pessoa.

Vai Sarah, continue a história.

Homem de Lata, soldado, partes do corpo caras, Homem Sem Corpo, saber se é humano.

Creio que já abordei os principais tópicos.

Há alguns outros pontos que fogem um pouco da normalidade e preciso MUITO da sua paciência.

Nas poucas informações médicas que consegui colher do nosso indivíduo havia diversas censuras.

Tive que montar um verdadeiro quebra-cabeças para entender o que aconteceu.

Talvez aquela parte da “maldição” do Homem de Lata do Mágico de Oz, esteja mais próxima do que queria.

Vamos lá…

Tivemos uma batalha feia com Marte há alguns anos.

Diversas naves em órbita e com a bandeira da Terra foram derrubadas e qualquer um que se aproximasse era abatido, seja civil ou militar.

Um grupo especial de incursão foi designado.

Normalmente a infantaria usa capacete, botas, respirador, arma e um protetor peitoral capaz de aguentar um baita coice.

Mas o grupo especial ganhou um “presentinho” a mais.

Uma armadura digna de filmes de ficção científica.

Ali havia de tudo, respirador, absorvedor de impactos, injeção anestésica…

…aliás esse último, ouvi dizer, alguns estavam alterando para estimulantes…

…e tantos outros recursos que lutas de humanos contra humanos já não eram mais justas.

Nunca foram, se você pensar direito.

Basicamente você tinha um tanque em tamanho humano, se movendo, atirando e matando.

Quando recebia um tiro, o coice quase não era sentido e a carne lá dentro era anestesiada.

Aliás, soldados destreinados faziam movimentos tão amplos, rápidos e fortes…

…e como estavam anestesiados…

…que frequentemente destruíram tendões.

Coisa de primeiras versões.

Hoje, só há hematomas e isso faz parte do serviço.

Agora pense comigo, como se derrota algo que não é parado por projéteis rápidos?

E que tal, coisas que se movem devagar?

Foi jogo sujo com certeza.

Jogaram ácido industrial nos soldados do Grupo Especial.

Nosso amigo em questão perdeu ambas as pernas.

Algumas cirurgias depois e ele tinha duas próteses em pleno funcionamento.

Se chutasse uma bola iria jogá-la tão longe que um novo recorde seria batido…

…ou a bola explodiria com o impacto.

Amputados no Grupo Especial são coisas do dia a dia.

A piada interna do grupo, e eu já atendi muitos relatando isso…

…era de que aqueles que tinham todos os membros não foram devidamente “iniciados”.

Os braços foram em outra oportunidade.

Outra incursão em Marte, perto do Monte Olimpo, a maior montanha de Marte.

Como a maior parte da artilharia antiaérea de Marte ficava ali, resolveram sabotá-la numa missão muito especial.

Acontece que aquela área é militarmente intocável.

Nada chega pelo chão, e pelo ar é rapidamente dizimada.

Para cada problema se inventa uma solução engenhosa.

Pegaram todos do Grupo Especial, colocaram nas suas armaduras e os enfiaram dentro do maior canhão eletromagnético já feito.

Realmente a nave Osíris era exagerada nesse quesito.

Reza a lenda que BEM antigamente havia circos que colocavam palhaços dentro de canhões e os arremessavam a grandes alturas e distâncias.

O truque era como mantê-los vivos, não é?

No caso dos nossos garotos, eram as armaduras que fariam o serviço de proteção.

O canhão eletromagnético da Osíris os jogaria numa velocidade absurda na atmosfera de Marte;

Eles cairiam até o mais próximo possível do ponto de inserção e fariam o serviço.

Alguma informação vazou e no dia da operação, quando a Osíris se aproximou

foi atacada.

Acontece que do lado de baixo, na superfície também havia canhões eletromagnéticos.

Não eram do mesmo tamanho da Osíris, mas em quantidade eram superiores.

Estavam destruindo a nave convés por convés e resolveram contra-atacar ainda assim.

Lançaram o Grupo Especial pouco antes da Osíris ser totalmente destruída.

Os tiros continuaram e metade do Grupo Especial se foi, sendo arrebentado no ar por canhões gigantes enquanto desciam rapidamente.

Eram estrelas cadentes!

HSC-01 foi um dos poucos sobreviventes e os tiros arrancaram-lhe a mão esquerda e uma parte considerável de tudo que havia do lado direito.

A armadura fez o serviço mantendo-o vivo tempo suficiente para ele ser resgatado.

Dizem que ele ainda enfrentou inimigos atirando com os pés, mas duvido muito.

Está contando aí?

Perdeu pernas, perdeu braços…

Só faltava peitoral e cabeça, correto?

Bem, aqui a história fica um pouco esquisita.

Não consigo deixar de olhar para o HSC-01 através do vidro desse aquário e pensar no quanto ele deve ter sofrido.

Não há registros claros de como o restante de seu corpo foi perdido.

Suspeita-se de algum tipo de ataque biológico…

…algum tipo de rejeição de tantos componentes cibernéticos…

…ou câncer terminal.

Claro que pesquisei todas essas possibilidades a fundo.

Não há registro de ataques biológicos em toda a história do Exército da Terra…

…e sim, eu admito que “ET” é uma sigla terrível.

Não há, em toda a história e literatura, nenhuma rejeição tão catastrófica de tecido orgânico ou cibernético nos últimos 200 anos.

E, como era de se esperar, o perfil genético do nosso HSC-01 não indica nenhuma tendência a câncer expressiva.

Só seria possível 100% de certeza se eu tivesse acesso aos familiares dele, mas essa informação eu não tenho.

Mas os mistérios nem foram todos descritos!

O que mais me intriga é que em todas as circunstâncias que eu descrevi as missões foram um sucesso.

Como um homem cujas pernas foram dissolvidas em ácido industrial, conseguiu terminar uma missão?

Como esse mesmo homem, meses depois, é abatido no ar e sem MEMBROS do corpo, conseguiu não só sobreviver, como explodir uma base?

Para qualquer um dos computadores que eu faço essas simulações a resposta sempre é a mesma “não conseguiria”.

E aqui estamos.

O que sobrou do homem está ali na minha frente, imóvel.

E cabe a mim descobrir.

Me enervo, com vontade suficiente de agarrar todo meu material e jogar fora.

Esquece.

Numa atitude impulsiva eu abro a porta do aquário de observação do HSC-01 e entro.

Não há nenhuma reação perceptível por parte dele.

A visão de dentro do aquário é diferente da visão de fora.

Claro, projeções.

Todo lugar tem isso.

Por dentro, o aquário parece uma praça muito tranquila com chão de pedra e dando vistas para uma floresta que começa rara e se torna densa.

O verde, o amarelo e o cinza tem um tom incrível.

Minha raiva foi embora subitamente.

Me sento num dos bancos disponíveis e aprecio o que seria equivalente ao sol.

Claro que estamos a 50 metros de profundidade, mas, repito, é tudo projeção, então para todos os efeitos está fazendo um sol delicioso.

Volto rapidamente para minha sala, pego um livro e uma xícara de café.

Sim, estive com raiva, mas isso não diminui minha necessidade de vitamina D.

Me sento e começo a bebericar o café estando quase de frente para nosso hóspede.

Ele continua parado e depois que paro de lhe observar, venho para meu livro.

Eu gosto de pensar assim.

“Eu vou”, “eu entro”, “eu estou” no livro.

Por vezes até os “como”!

Esse eu escolhi baseado nesse trabalho que me deram.

Entenda, sou perita em Psicologia Clínica, com especialidade em Estresse Pós-Traumático.

Esse somatório de conhecimento é importante para tratar veteranos de guerra.

Gente que viu centenas, milhares de pessoas morrendo…

…algumas pelas suas próprias mãos.

Meu primeiro paciente foi um amputado, ex-fuzileiro que não tinha dinheiro para pagar suas próteses orgânicas.

Com muita terapia e um bom advogado conseguimos fazer o Estado pagar por uma nova perna e um novo braço para o homem.

Ele parecia bem, até se enforcar meses depois que lhe dei alta.

Na sua nota de suicídio: “Já lutei tudo que tinha que lutar. Ganhei para os outros, mas e para mim?”

Um outro paciente ficou catatônico por meses.

Quando saiu dessa crise fizemos uma atividade de desenho…

…e tudo era um mar de vermelho.

Quando pedi para ele me explicar o desenho, meu coração saiu do peito.

Era “o chão de Marte, com o sangue das pessoas que ele matou”.

Entende o que eu estou dizendo?

O que eu tenho, aqui na minha frente?

É um homem?

É um amontoado de placas, circuitos, eletricidade e micro-chips?

Não consigo sair do título da porcaria do livro!!

“O Barco de Teseu”.

Fecho o livro…

…o que é um termo bem interessante para uma folha plástica ultra rígida…

…que acende milhões de minúsculos pontos luminosos para formar as palavras do livro que estava lendo.

Tomo um gole do café, olho para nosso convidado mais uma vez, suspiro e lanço uma pergunta.

- Aqui é bastante tranquilo, não é verdade?

Não vem nenhuma resposta e ele continua olhando para frente.

Quando desliguei o livro deixei os monitores do HSC-01 disponíveis.

Há energia ali.

Ele não está “desligado”.

Todas as funções estão ativas.

Ele apenas não age.

Exatamente como um catatônico.

Me inclino um pouco para a frente e fico encarando a projeção que ele escolheu para esse lugar.

Só depois de um tempo que percebi.

Uma floresta de bambus.

O ambiente inteiro tinha aspecto oriental, na verdade.

O banco, a floresta de bambus, uma lanterna de pedra mais adiante…

Assim que uma suave brisa passou por mim, lembrei-me do café e bebi mais.

Ok, admito que gosto bastante.

Voltei para o livro ou pelo menos para a ideia dele e fiquei divagando.

O barco.

Nele, a alegoria era clara, mas inconclusiva.

O barco de Teseu voltava de suas aventuras parcialmente destruído e o consertavam.

Trocavam madeiras aqui e ali, envernizavam, davam um tapinha nele e zarpava para mais aventuras contra deuses e monstros.

Voltava novamente destruído, era renovado e assim ia.

E alguém pensou “hei, se você trocou todas as madeiras, ainda é o mesmo barco”?

E eu respondi, mais com a boca do que com os pensamentos.

- Se você troca todas as suas partes, ainda é humano?

E comecei uma ladainha interna que sempre deixava meus pais loucos.

Enumerei todas as possibilidades que consegui, só com a cabeça.

Uma criança nasce, cresce e se desenvolve.

Se calcula que a cada 7 anos aproximadamente, nenhuma das suas células disponíveis e atuantes são as mesmas que iniciaram “a viagem”.

Não se pode dizer que dos 0 aos 7 anos somos uma pessoa, depois dos 7 ao 14 anos somos outras, etc, mas você entendeu, não é?

Afinal a troca é tão sutil, tão interna e profunda, a adaptação é tão grande, o remapeamento neurológico é tão perfeito…

Somos um degradê!

Mas e quando se troca a carne por metal, ou uma fibra qualquer?

Há tantos truques para se enganar o cérebro e ele achar que aquele braço ou perna mecânicos são de carne e ossos!

Mas e quando o próprio cérebro é trocado no processo?

Será que em algum lugar, material ou imaterial há a contraparte orgânica desse homem que está na minha frente?

Será que numa dimensão bizarra existe uma espécie de zumbi feita só com o corpo do HSC-01 e aqui está a mente?

E se existe espírito, para onde ele foi?

Está ali dentro?

Está convertido em sinais binários, ou se foi com a massa orgânica descartada com o lixo hospitalar de sua última operação?

E se…

…e se ele está ali agora, dentro daquilo, preso, sem poder sair?

Como um demônio da cultura japonesa, lacrado, no escuro e sozinho, impossibilitado de sair?

Essa última possibilidade me doeu demais.

Sei que ela só foi colocada em pauta por causa do cenário que ele escolheu para esse lugar.

Preso!

Terrivelmente preso, com frio, com medo, confuso e só!

Saio do banco e sem querer derrubo a xícara de café.

Aconteceu tão rápido!

Antes que a xícara caísse no chão, ele conseguiu pegá-la.

O líquido se derramou, mas lá estava a xícara, intacta e estávamos a centímetros um do outro.

- Eu…eu posso te ajudar de alguma maneira?

Respondi gaguejando, ainda temerosa das possibilidades que os generais que me deram essa tarefa avisaram.

“Queremos que você o veja, principalmente se ele vai ficar louco, arrancar a própria cabeça e matar a todos nós”.

Com meu senso de humor torto eu pensei na coisa na mesma sequência em que eles falaram.

Um robô sem cabeça matando pessoas, até chegar num lugar cheio de gente, ajoelhar-se, expor a bateria de fusão e explodir tudo num raio de quilômetros.

Ele nada respondeu sobre minha pergunta.

Voltamos, ambos, para nossas posições originais, peguei minha xícara e fiquei olhando para ele.

- Por favor me diga. Eu posso te ajudar?

E foi assim que eu soube a resposta para o dilema do Barco de Teseu.

Ele próprio respondeu.

Chacoalhou a cabeça, da esquerda para a direita, lentamente, mas de maneira clara para dizer “Não”.

E voltou para sua imobilidade.

Não havia mais nada ali dentro.

Perdi um bom café, perdi meses de trabalho…

…mas nada disso nunca vai se comparar ao que aquele homem perdeu.

Afinal, agora ele era menos do que um Homem Sem Corpo.

Achou o conto muito longo e quer ler depois? Mande para seu Kindle! É só entrar em https://www.fivefilters.org/push-to-kindle/ baixar a extensão para navegador e configurá-lo. Detalhe: Isso não é uma propaganda! É que eu uso e acho muito útil.

--

--

Renato Teixeira
Renato Teixeira

Written by Renato Teixeira

Futuro psicólogo, gamer, ex-praticante de Kung-fu, escritor de contos, sono polifásico, leitor inveterado e futurista! Um paulistano morando no RJ.

No responses yet